sábado, 1 de janeiro de 2011

Pacata alma




Perco-me nessa solidão na qual me encontro. A felicidade abandona-me como se eu fosse indigna dela. Isso é triste, comove os tolos, os afeminados e os sentimentais. Comove, no entanto, por nada. Não resulta em nada, não melhora em nada. O mar escuro que me sufoca continua o mesmo e, ainda que eu evoque a pena daqueles que ainda têm coração, de nada me servirá, pois estou, pelo visto, fadada a perecer envolta no eterno véu que me circunda.
Coração? Já não o tenho. Vicente o levou, pra longe, fora de meu alcance, para sempre. Quisera esquecer o que passei desde então. Sem coração, só me faltava levarem a alma. Se a levassem, bom seria, pois aí nada eu sentiria a respeito do que aconteceu. Mas não, para ver-me sofrer, gemer de angústia perante a agonizante dor que é transparecida em minha face em todas as 24 horas de um dia, de todos os dias de minha vida desde que meu coração fora levado de mim, minha alma permanece intacta, banhada na tristeza e na vergonha, que tomam esse pobre corpo torpe que não mais agüenta sofrer.
Ele não era digno de mim. Todos me diziam, avisavam que um dia o pior aconteceria, eu seria abandonada ao relento. Mas, apaixonado que é apaixonado cego está, e, assim, eu também estava. Simplesmente casei-me com meus 32 anos de idade. Sim, já estava passada e era um milagre conseguir um noivo por amor, me diziam. Andavam todos alvoroçados na cidade, com o casamento da velha encalhada rica, herdeira do prefeito da cidade. Mas, na verdade, misturada àquela inveja, estavam os murmurinhos, em todos os cantos, de que eu não seria feliz, pois aquele homem não me amava, não estava interessado na minha pessoa, tampouco no deleite que teria em minhas ancas, que era o típico tropeiro que almejava dinheiro para alcançar seus objetivos tolos e idealizados. Ainda que eu soubesse de tudo isso àquela época, de nada serviria. Como disse, apaixonada eu estava. Completamente caída de amores pelo valente garanhão de 23.
E então, foi o que aconteceu. Vicente amou-me durante 142 dias, duas estâncias e cinco milhões em moedas de ouro. Com toda a certeza, iludi-me pensando que, aos 32 anos, encontraria alguém que realmente me amasse como eu era e nada mais. Porém, ao deixar-me, Vicente levou meu coração consigo, pois o fez através de um repentino recado ao dono do bolicho, seu Elias, que me contara que o meu homem, já borracho, saiu gritando a tudo e todos que eu era uma velha sem sal, fedorenta e ruim de se comer. Alegou que casara-se comigo somente por interesse, que roubara todo o meu dinheiro e também meu coração, pois eu o idolatrava e amava como uma menina ama a seu cachorro pequenez.
Agora, bem, passados 7 anos, encontro-me no mesmo estado de espírito que me encontrava naquele dia frio de agosto em que fui deixada. Agosto, o mês do cachorro louco. Também pudera, só traz desgraça a todos: mata uns, leva outros, pestaneja o campo, endurece o gado. Só quem passa ou passou por isso sabe. E foi no mês de agosto de 1857 que meu coração se foi. Desde então, minha alma vaga solta neste triste corpo carcomido pelo tempo e pela tristeza. Já não tenho mais vontades. Faz quanto tempo que não me lavo? Já nem sei. Perdi a noção do tempo. Perdi os dissabores da vida, perdi a vontade de viver. Perdi o homem que amei e que, na verdade, ao invés de homem, era uma mentira. Em breve encontrar-me-ei com os bichos da terra, que consumir-me-ão com o maior prazer de desfrute que a vida pode os dar. E que assim se faça.

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